Woodstock Pé Vermelho - Parte 3

Nesta última parte da reportagem sobre o Colher de Chá descubra como foi o dia do festival, a apresentação dos Mutantes e o por que um segundo festival não foi concretizado. Se ainda  não conferiu a reportagem na íntegra, clique aqui para saber de toda a movimentação do Woodstock Pé Vermelho. 
Figuras da Cultura pop  e da Contra-Cultura da época do festival
foram pintadas na casa da Chácara Cascata

Muitos mochileiros chegaram semanas antes do Festival e ficaram acampados na Chácara Cascata para ouvir o “rock brasuca”. Feita por um artista plástico de Astorga, uma enorme imagem da face Jesus Cristo, com 10 metros de altura, imperava sobre o campo do clube.  A mesma casa onde os organizadores se alojaram tornou-se uma espécie de mural artístico. Cada visitante que passava pela casinha, desenhava suas idéias na parede. O lar da organização tornou-se um atrativo visual para as pessoas que ali se encontravam. Carlos Alberto Cavali, baterista dos “Os Bárbaros”, banda que se apresentou no Festival, revela que havia nas paredes histórias em HQ e desenhos que representavam o movimento de liberdade adotada pelo festival. Ainda hoje, esta casa continua na Chácara Cascata e seus desenhos permaneceram até o inicio de 2009, quando o caseiro não sabendo da importância história dessa expressão, removeu as gravuras quando pintou a casa. 
Um dia antes do festival, a movimentação na chácara já era grande. Começava a serem instaladas as primeiras barracas de comidas e bebidas. Muitos artesãos aproveitaram o clima do festival para vender suas bugigangas. Às duas da tarde “Os Mutantes” começaram a passar o som para testar a aparelhagem. A banda trouxe quase quatro toneladas de equipamentos sob o comando do engenheiro de som e produtor musical Peninha.
Ao som do álbum “”Pictures at an Exhibition” do “Emerson, Lake & Palmer” e do álbum “Fragile”, do “Yes”, que rolava em fita cassete, a organização fazia os últimos reparos. Quando o som cessou, por volta da meia noite, uma dupla caipira começou a tocar. Às cinco da manhã o silêncio veio acompanhado da ansiedade dos mochileiros a espera da entrada definitiva de Arnaldo Batista e companhia no palco do “Colher de Chá”.
Se a cidade de Bethel parou com Woodstock, o centro de Cambé continuava com o mesmo ar de cidade interiorana no auge da produção cafeeira: a missa no domingo, a sorveteria cheia de gente e a matine do cinema lotado. A única movimentação estranha que se via, eram os mochileiros pedindo informação nas ruas sobre um tal concerto de rock. Era a prova de que o festival foi mais reconhecido fora dos limites cambeenses. 
O concerto teve ampla divulgação por parte da imprensa. Era distribuído o terceiro número do jornal Subterrâneo, produzido no estilo underground por gente conhecida como Domingos Pellegrini, Carlos Eduardo Sargi, Eduardo Borba, Cláudio Cambé e alguns dos organizadores do festival. “A Folha de Londrina” chegou a instalar uma barraca no local dos shows para uma cobertura especial. Notícias também apareceram na TV, mais ainda foi pouco:
Poderia ter sido feito uma transmissão, através do canal 4 de Curitiba, em uma ocasião que estive lá fazendo a divulgação do festival na TV Paranaense canal 12, através do programa do Jabur Junior. Houve também a possibilidade de fazer uma gravação na hora porquê tinha cabo de filmagem ao vivo no local.  Mas era necessário usar um prédio elevado de Cambé para a transmissão de microondas. O único que existia na época era a torre da Igreja Matriz.  (Wilson Vidotto)
Enquanto os músicos faziam história, o jornalista Oswaldo Diniz narrava fazendo poesia os acontecimentos daquele dia 11 de fevereiro: 
Às oito e vinte com um grito: “Hoje é o primeiro dia do resto de sua vida”, a aparelhagem de som foi ligada e um solo de órgão, gravado em fita, acordou os dorminhocos renitentes. Aos poucos, lentamente, com os olhos vermelhos, um ar quase místico, o que dava um ar extremamente belo à cena, as pessoas foram se aproximando do palco. O sol começava já a castigar. A expectativa que dominava a todos pelo inicio do show foi sendo substituída, a custa de cansaço, sol e suor, por uma indiferença que os fazia deitar e tentar dormir. 
Na loucura da preparação para os últimos detalhes do festival, a organização esqueceu de buscar os Mutantes, que estavam hospedados em uma república no centro de Cambé.
Mochileiros reunidos para ver Os Mutantes
Eram 10h30min quando finalmente soaram os acordes da guitarra de Tony Osanah, anunciando o início do “Colher de Chá”. Osanah é autor de “Cavaleiro de Aruanda” e integrou  os "Beast Boys”. Com o sol a pino, as pessoas tentavam aproveitar o abrigo das barraquinhas comerciais espalhadas por todo o campo que foi coberto com palha de arroz. De forma improvisada, com o auxilio de folhas e cobertores, pequenas barracas iam surgindo na tentativa de prolongar o conforto. Alguns se refrescavam com uma banho na Cascata. A ameaça de insolação espreitava aqueles que insistiam em ignorar o forte calor, o que provocou o adiamento do show.
Uma poeira incrível sujava as roupas coloridas, sumárias em sua maioria, dos que se encontravam esparramadas por toda a parte. O calor de quase quarenta graus se traduzia em suor e preguiça, fazendo os poucos hippies de verdade e muitos “hippies de boutique” (aqueles hippies que só tem mesmo as roupas coloridas de luxo para usar só em ambientes adequados) se espicharem na grama e aumentarem consideravelmente o consumo de cerveja e coca-cola.  Algumas meninas de biquíni faziam a festa dos fotógrafos (em numero impressionante) que circulavam por todo o local. Léo o técnico de som dos “Mutantes” (“parece o capeta, uma das definições ouvidas a seu respeito) e sua namorada, com um beijo cinematográfico de quinze minutos, sensibilizaram os fotógrafos presentes que não paravam de dançar  a volta de sua vasta cabeleira loira durante todo o espetáculo. O que o pessoal sentia mesmo era a falta de som.  (Novo Jornal) 
Havia até freiras sentadas em um canto do campo. Nesse clima tranquilo, famílias deram um clima descontraído. Na tarde ensolarada do domingo, o público da região compareceu com mais peso no Clube Cascata. O som subiu lá pelas 14h30 com a banda “Banana Tree” de Joinville. Em seguida, “A Semente” de Curitiba, “Os Bárbaros” de Cambé  e mais uma vez Tony Osanah. Quem também deu as caras lá e  fez a primeira aparição em solo brasileiro, ainda de modo improvisado, foi  cantor britânico Ritchie, que ficou conhecido mais tarde pela música “Menina Veneno”. 

O público esperava ansiosamente pela entrada de “Os Mutantes”. Depois de muita espera, somente às 18h30 a banda, que revolucionou o rock Brasil, subiu ao palco. Era "Os Mutantes", mas de uma maneira diferente. Mais progressivo e sem Rita Lee (que já havia deixado a banda), o som era hipnótico. Ao som dos instrumentos percebe-se a sonoridade metálica e estridente da cítara indiana tocada por Arnaldo Batista, uma revolução. 
“O segundo numero foi dedicado a extinta revista Rolling Stones, o terceiro a primeira estrela que apareceu no céu avermelhado...Depois de cinco números, o ultimo dos quais durou 20 minutos os Mutantes cederam lugar a Tony Osanah. Aos primeiros acordes de uma musica sobre Jesus, as luzes se apagaram e o céu de encheu de fogos de artifício. A plateia começo a se ligar, balançando o corpo, estalando os dedos e batendo palmas”. (Folha de Londrina Oswaldo Diniz 13/02/1973) 
Enquanto Tony Osanah, “Os Mutantes” e “Joelhos de Porco” alternavam-se no palco, a chuva chegou de mansinho e o concerto teve que ser interrompido pela segunda vez. Somente às quatro da manhã as luzes se apagaram e o pessoal deitou e começou a dormir ali mesmo, compartilhando o mesmo local. Acabava o “Colher de Chá”.
Foram quinze bandas anunciadas no festival, mas apenas seis tocaram para o publico presente: “Banana Tree”, “A semente”, “Os Bárbaros”, “Joelhos de Porco”, Tony Osanah e ”Os Mutantes”. Bandas como “Chico Amiro”, “Edwaldo e Walter Guimarães”, “Hortelã e Pimenta” e “Tropa Santa” não puderam participar. O restante das bandas nem mesmo compareceu. 
Uma semana depois do festival, Tony Osanah voltou a Chacará Cascata. Ele viu os vestígios da realização do I Concerto de Rock Brasil. Maravilhado, Osanah dizia que “tudo deveria ser deixado com está, temos que tombar como patrimônio histórico da cidade.”

Mais uma “Colher de Chá”? 
A população cambeense acompanhou o concerto com certo distanciamento. O estilo despreocupado e revolucionário do rock‘n roll ainda preocupava os que não estavam acostumados com um estilo tão contestatório e cheio de linguagens diferentes. Apesar de o festival ser realizado no clima de “paz, amor e curtição” e fazer reconhecer a pequena cidade do interior, a idéia negativa do mochileiro, do movimento hippie e do rock falaram mais alto quando se surgiu a possibilidade de concretizar o Segundo “Colher de Chá” em 1974:
Houve dificuldade porquê as pessoas sabiam que o festival tinha uma dimensão muito além do que eles imaginavam. Foram muitos motivos negativos. Quando não era uma censura a obra literária, era censura a ordem administrativa. Íamos fazer o Festival de Verão incluindo o Festival Colher de Chá que seria o segundo concerto. Não foi possível pela intolerância das autoridades. Pensamos em fazer no estádio de futebol, mas as autoridades não permitiram. Assim, cancelamos o contrato com a Pratulha do Espaço, que era formado pelo mesmo integrantes dos Mutantes, já que os Mutantes tinha terminado. Cambé foi uma das ultimas apresentações do “Os Mutantes” naquele espírito dos anos 70. Wilson Vidotto
O interessante é que ainda muitos cambeenses desconhecem que Cambé está presente na construção da história do rock ‘n roll nacional.  


A música abaixo é de uma banda italiana chamada Formula Tree, de rock progressivo. No festival ela foi interpretada pela banda de Astorga, Os Vultos. 
Procurei sobre essa banda na web e encontrei o canal do Youtube de David Lino, ele tem vídeos sobre a cidade de Astorga, mas sempre utiliza Os Vultos como paisagem sonora interpretando algum clássico da época. Vale a pena conferir.

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